Com a entrada em vigor da lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, por conversão da Medida Provisória 881/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado, ocorreram importantes modificações em nosso sistema jurídico, em razão da alteração de vários diplomas legais, dentre eles o Código Civil.
Referida Medida Provisória, conhecida como a MP da Liberdade Econômica, teve, dentre os seus objetivos, estimular o empreendedorismo, a regularização de empresas, geração de emprego e renda e o desenvolvimento econômico da nação. Além disso, visou-se diminuir a percepção de que as atividades econômicas, no Brasil, somente devam ser exercidas se presente expressa permissão do Estado, conforme se vê da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP:
“Existe a percepção de que no Brasil ainda prevalece o pressuposto de que as atividades econômicas devam ser exercidas somente se presente expressa permissão do Estado, fazendo com que o empresário brasileiro, em contraposição ao resto do mundo desenvolvido e emergente, não se sinta seguro para produzir, gerar emprego e renda”.
Desse modo, uma das novidades introduzidas pela citada norma legal foi a inerente à criação da sociedade limitada unipessoal, como forma de aderir a uma “tendência mundial que se consolidou há décadas”, seguindo-se países como Estados Unidos da América, Alemanha e a República Popular da China, e com o objetivo de encerrar a prática existente em nosso país de se admitir sócio, na sociedade limitada, apenas para observar a pluralidade até então exigida pela nossa legislação.
Alterou-se, assim, o Código Civil Brasileiro, de forma a ser incluir os §§1º e 2º ao seu artigo 1.052, in verbis:
“Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.
- 1º A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas.
- 2º Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”
Passou-se, então, a permitir, em nosso país, a criação de sociedade limitada com apenas um titular, a exemplo do que já ocorria com a EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (CC, art. 980-A), a Subsidiária Integral (Lei das S/A, art. 251) e a Sociedade Unipessoal de Advocacia (lei 8.906/94, art. 15), pessoas jurídicas constituídas por apenas um sócio/titular.
Em razão disso, não se aplicará à sociedade limitada o disposto no artigo 1.033, IV do Código Civil, que impõe a dissolução à sociedade quando ocorrer a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, desde que, na própria alteração contratual de saída de sócio, haja a opção pela sociedade limitada unipessoal, promovendo-se a competente consolidação contratual, a fim de adequar o contrato social às disposições pertinentes e à sua nova realidade.
A crítica que fazemos, em que pesem entendimentos em sentido contrário, é a inerente ao consequente desestímulo para a constituição de novas EIRELIS, haja vista o capital social mínimo, devidamente integralizado, exigido pelo artigo 980-A do Código Civil para essa espécie de pessoa jurídica, que não será inferior a 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no País, o que, certamente, será considerado por muitos como um entrave se comparado à sociedade unipessoal limitada, para a qual o legislador não estabeleceu valor mínimo de capital.
Bastava, a nosso ver, alterar citado dispositivo, de forma a não mais se exigir capital mínimo para a constituição das EIRELIS, e, se fosse o caso, não mais limitar a apenas uma a constituição de EIRELI por pessoas naturais.
Como consequência, diminuir-se-á, na prática, consideravelmente, a criação de novas Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada, conforme veremos nos anos vindouros, acabando por se desestimular a constituição dessa tão importante e, ainda, recém-nascida, espécie de pessoa jurídica, que foi tão aplaudida e prestigiada quando da edição da lei 12.441/2011.
Corre-se o risco, inclusive, de cair em desuso, a exemplo do que ocorreu com a sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e em comandita por ações.
Além disso, mister se faz frisar que, pela boa técnica, a própria expressão “sociedade unipessoal” é contraditória, eis que o termo “sociedade”, por si só, designa a existência de pluralidade de sócios.
Nesse sentido, bem asseveram Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 948), ao comentarem o artigo 980-A do Código Civil, que trata da EIRELI:
“Cabe destacar que, embora criada para estimular a atividade empresária individual, por meio da bifurcação de patrimônios, a EIRELI não se confunde com a figura do empresário individual. Consoante o art. 44, VI, do Código Civil, ela é considerada pessoa jurídica de direito privado, ao passo que o empresário individual permanece como pessoa física. Não obstante alguns autores acreditem que a Lei Civil criou uma modalidade de ‘sociedade limitada unipessoal’ (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 132), tal denominação já é, por si só, contraditória, visto que o pressuposto de qualquer sociedade é a reunião de, ao menos, duas pessoas.” (Grifo nosso)
Feitas essas considerações, voltemo-nos ao ponto central deste artigo.
A sociedade simples, cujo registro será feito no Serviço de Registro Civil de Pessoas Jurídicas de sua sede (CC, art. 1.150), encontra-se devidamente disciplinada nos artigos 997 e seguintes do Código Civil, podendo constituir-se sob a forma pura (sociedade simples pura) ou de conformidade com um dos tipos regulados em seus artigos 1.039 a 1.092, conforme preceitua o artigo 983 do mesmo diploma legal, in verbis:
“Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 ; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias.”
A bem da verdade, não poderá, na prática, ser constituída sob a forma de Sociedade Anônima (arts. 1.088 e 1.089), tampouco sob a forma de Sociedade em Comandita por Ações (arts. 1.090 a 1.092), por serem estas sempre consideradas sociedades empresárias, independentemente de seu objeto, conforme preconiza o artigo 982, parágrafo único do Código Civil.
Poderá, assim, a sociedade simples, constituir-se de conformidade com os seguintes tipos societários: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada, sendo esta última a sua forma mais usual, haja vista as inúmeras vantagens desse tipo societário.
Na prática, portanto, a constituição de tal sociedade se dá em sua forma pura (Sociedade Simples Pura) ou revestindo-se da forma Limitada (Sociedade Simples Ltda), com a aplicação das regras atinentes à Sociedade Limitada, conforme dispõe o artigo 1.150 do Código Civil, que assim preconiza:
“Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.” (grifo nosso)
Desse modo, a pergunta que se faz é a seguinte:
Com o advento da lei 13.874/2019, passou a ser possível a constituição de sociedade simples unipessoal limitada?
A resposta é positiva, haja vista a autorização legal contida no artigo 983 c/c o disposto no artigo 1.150, ambos do Código Civil.
Tanto é que o IRTDPJBrasil baixou, no final de 2019, a Orientação Técnica nº 2/2019, por entender ser plenamente viável o registro das sociedades simples unipessoais Ltda nos Serviços de Registros Civis de Pessoas Jurídicas de todo o país. Teve assim, a referida orientação, o objetivo de “esclarecer aos cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas como deve ser feito o registro desse tipo de sociedade simples” e “unificar os procedimentos de registro inicial e por transformação”.
A observação que fazemos é, inicialmente, no tocante ao nome empresarial desse tipo societário que, como bem sabemos, poderá ser formado por razão ou denominação social.
A nosso ver, a denominação ou razão social deverá ser sempre seguida das expressões “Sociedade Simples Unipessoal Ltda’, e não apenas da expressão “Ltda.”, em razão do Princípio da Veracidade, tão importante para o Direito Societário, e a fim de distingui-la das demais espécies societárias, bem como para se garantir segurança jurídica e clareza a todos quantos venham a com ela manter algum tipo de relação jurídica, tal como ocorre com a EIRELI, com a Sociedade Anônima, com as Cooperativas e outros tipos de pessoas jurídicas existentes em nosso ordenamento jurídico.
Além disso, vale ressaltar que, na formação da razão social, não poderá ser utilizada a expressão “& Cia”, por ser designadora da presença de outros sócios.
Outra questão importante é a inerente à necessária consolidação contratual todas as vezes em que houver alteração contratual com saída de sócio e a opção, exercida pelo titular remanescente, pela adoção da sociedade simples unipessoal Ltda, a fim de se adequar o ato constitutivo às disposições pertinentes e à sua nova realidade.
Registre-se, também, que no tocante à designação do integrante da sociedade simples unipessoal Ltda, mostra-se mais adequada a expressão “titular”, no lugar de “sócio”, na medida em que esta última designa relação societária mantida entre duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas.
Por fim, resta dizer que a sociedade simples pura, por sua vez, não poderá ser constituída sob a forma unipessoal, por falta de autorização legal.
Fonte: Migalhas