Em tempos de pandemia, manter o engajamento e práticas de desenvolvimento tem sido um grande desafio para as empresas. Devido ao isolamento social, muitas tiveram que rever os planos para 2020 e cancelar treinamentos, viagens e encontros presenciais. Nos programas de mentoria, que se tornaram populares nos últimos anos como uma forma de acelerar o desenvolvimento das pessoas na organização, a estratégia precisou ser revista.
“Normalmente, as mentorias são feitas presencialmente”, diz Letícia Rodrigues, sócia-fundadora da Tree, consultoria de diversidade. A tradição dos encontros presenciais vem, em parte, da ideia de criar uma relação de proximidade e confiança. Mas, segundo Letícia, a quarentena não significou o fim dos programas. “Várias empresas continuaram o que já estavam fazendo antes da pandemia, mas com adaptações”, diz. A principal diz respeito a realização dos encontros no formato digital. E, se os objetivos permaneceram os mesmos, segundo Letícia, a mentoria durante a pandemia trouxe um fator humano que antes não era tão forte. “Nesse momento de insegurança, essa proximidade com o mentor se tornou o diferencial para alguns processos”.
Na Alvarez & Marsal, consultoria de gestão e reestruturação de empresas com 470 funcionários, a mentoria acabou servindo para alinhar a comunicação no começo da pandemia. O programa ocorre há cinco anos e inclui todos os funcionários, que são acompanhados de perto e trocam de mentor a cada dois anos. “Logo no início vimos como as pessoas estavam perdidas, entravam em contato o tempo todo para perguntar alguma coisa e muito ansiosas”, diz Lilian Giorgi, diretora-sênior de Recursos Humanos da Alvarez & Marsal.
“Vimos que os mentores passaram a ser muito mais solicitados e, em vez de carreira, as pessoas começaram a trocar mais informações sobre como estavam em casa, com a família”, diz. Fazer dos mentores os porta-vozes da empresa nesse momento foi um passo natural.
Para a psicóloga Bela Fernandes, da consultoria Aylmer Desenvolvimento Humano, o relacionamento criado na mentoria ajuda a ter uma comunicação mais precisa e adequada pra cada funcionário. “O mentor conquista uma proximidade que permite ter uma leitura do que a pessoa precisa”, diz. “Com isso, consegue acalmá-la, mudar o olhar que ela tem sobre si mesma ou sobre uma situação”. Muitas vezes, os mentores são pessoas mais velhas, experientes, que já passaram por alguma crise antes, o que pode servir de referência para o mentorado, outra vantagem em momentos como o atual.
“Na pandemia saímos de um programa super pragmático de evolução da carreira para também começar a olhar aspectos mais pessoais, sobre estado de saúde, estrutura familiar, se moravam sozinhos ou se saíram de São Paulo”, diz Rodrigo Mattos, sócio-diretor da Alvarez & Marsal e um dos mentores. Mesmo tendo trocado os cafés ao vivo por reuniões on-line, as conversas ganharam em valor. “A mentoria reforçou a necessidade de ter proximidade com alguém da companhia e me ajudou a entender como eu tenho me sentido, a conversar sobre meditação e disciplina no home-office”, diz Fernanda Palhares, associada sênior na Alvarez & Marsal e mentorada de Mattos.
Na Dow, a pandemia fez a companhia rever seu programa de mentoria. Na empresa, em 2020 teria início da segunda edição da mentoria voltada para a diversidade interna. Baseado em sete redes de afinidade, que reúnem grupos como negros e pardos, LGBT e mulheres e jovens, o programa previa encontros presenciais para conversas sobre carreira e barreiras encontradas pelos participantes. Além do perfil dos funcionários, um dos critérios para formar os pares mentor-mentorado era a localização geográfica. Mas as coisas mudaram na quarentena. “Acendeu uma luz e vimos uma oportunidade de repensar tudo”, diz Tiago Betti, líder de diversidade e inclusão da Dow América Latina.
Isso porque agora seria mais fácil incluir funcionários de áreas de manufatura, com pouca oferta de mentores e turnos diferentes da maioria dos líderes. Outra ideia que surgiu foi a mentoria entre regiões, conectando por exemplo, pessoas da Argentina e do Brasil. “Montamos alguns pares em diferentes países para promover integração cultural e fazer uma experiência”, diz Betti. Ao todo, são 36 mentorados hoje no Brasil, fazendo ao menos uma reunião por mês, seguindo roteiros sugeridos pela área de recursos humanos para atingir objetivos específicos.
A cada dois meses, o RH conversa com todos os participantes para entender como está sendo a mentoria. Previsto para durar seis meses, o programa foi estendido para oito meses, a pedido dos próprios funcionários. “Pensamos em continuar usando a mentoria virtual mesmo quando a situação voltar ao normal, para ter mais integração”, diz Betti. A mudança no programa também serviu para formar pares com mais afinidade, e não meramente por proximidade.
Para Ana Portela, analista sênior de RH na Dow em Breu Branco, no Pará, a mentoria a distância a fez se sentir mais incluída. “Sentia falta de me conectar com outras lideranças e entender a cultura da matriz, não sabia sempre como me comunicar”, diz. A mentoria com uma diretora permitiu que ela conhecesse mais de perto outro lado da empresa. “Conseguimos compartilhar pensamentos e formas de agir com diferentes públicos”, diz Ana. Sua mentora, Alessandra Tostes, diretora de engenharia e manutenção na Dow em Salvador, concorda. “É interessante entender o que acontece por lá e a realidade dela, o que ajuda também meu trabalho”, diz. O contato virtual não foi um problema, mesmo as duas não se conhecendo pessoalmente. “Dedicamos as primeiras sessões para contar nossa história e conhecer uma a outra, e tem dado muito certo.”
Para que os encontros virtuais deem certo, orientações foram dadas, como deixa as câmeras ligadas para ajudar na comunicação e disciplina para manter as reuniões programadas. No geral, as pessoas têm usado as ferramentas de reuniões virtuais já usadas no trabalho, mas têm liberdade para escolher como irão conversar. Para Letícia, da Tree, também é importante que se mantenha em mente os objetivos da mentoria. “Com tanta mudança na pandemia, existe o risco de os processos de mentoria se perderem, ficarem muito informais”, diz. “É preciso ter uma rigidez um pouco maior e seguir um roteiro para não perder o objetivo de desenvolvimento”.
Por outro lado, esse movimento de maior informalidade nas conversas feitas de casa também tem suas vantagens. “Eu conhecia meu mentor só no escritório, como um sócio”, diz Carolina Mendes, gerente sênior de auditoria na PwC, em Campinas (SP), e uma das selecionadas para um programa de mentoria para desenvolvimento de mulheres. Isso mudou com as interações por câmera, que revelaram a casa e a rotina do seu mentor. “Percebi os outros papeis que a gente desempenha e consigo vê-lo de forma mais humana”. Isso, conta, fez com que ela ficasse mais à vontade para expor seus medos e pensamentos em relação à carreira que antes não compartilharia.
“No começo eu estava inseguro com a interação on-line”, diz Adriano Correia, sócio e líder do setor de transporte e logística da PwC, em São Paulo, e mentor de Carolina. No pré-pandemia, ele fazia questão de encontros presenciais. Mas, com a mudança para o digital, as reuniões passaram a ser mais frequentes e as conversas, mais profundas. “A Carolina me viu com os meus filhos e que é possível conciliar isso com a carreira.
O estreitamento das relações foi um efeito colateral bem-vindo para Tatiana Fernandes, sócia e líder de RH da PwC Brasil. Como a empresa já tinha uma cultura de trabalho remoto, a adaptação não foi difícil e as palestras relacionadas à mentoria seguiram também no formato virtual. O desafio foi outro. “As mulheres em casa tendem a assumir mais tarefas e queríamos garantir que elas poderiam pudessem participar sem prejuízo”, diz Tatiana. No fim, o apoio do mentor foi uma forma de lidar com a questão. “Tivemos feedbacks de que isso ajudou a lidar com o estresse de ter que administrar as demandas profissionais e da casa”.
Fonte: Valor Econômico