Um patriarca bilionário, que mora fora do país, está fazendo doações periódicas para filhos, em São Paulo. Sempre que recebem uma doação, eles entram com mandado de segurança preventivo e não pagam o imposto sobre transmissão (ITCMD) de 4% ao Estado. No total, são 30 ações que somam R$ 46 milhões.

Divulgado pela imprensa recentemente, o caso corre em segredo de justiça e o nome da família não pode ser revelado – e esse caso não é único. De acordo com o Valor Econômico, apenas no Estado de São Paulo, existem pelo menos 200 processos aguardando julgamento, em ações que envolvem aproximadamente R 60 bilhões – o que pode provocar um impacto, na arrecadação, de R$ 5,4 bilhões, incluso eventuais devoluções a que já pagou o imposto. Esse valor supera o valor total arrecadada por ano com o ITCMD. São cerca de R$ 3 bilhões entre doações e heranças, segundo dados da Procuradoria-Geral do Estado (PGE).

Essa questão poderá ter um final na próxima sexta-feira, 23, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) irá decidir se os Estados podem cobrar ITCMD de residentes que receberam doações ou heranças de bens que estão fora do país ou que foram enviados por pessoas domiciliadas no exterior.

O caso a ser julgado é de uma advogada que recebeu uma herança do pai, radicado na Itália, e obteve autorização do TJ de São Paulo para não pagar ITCMD. Essa autorização está sendo contestada pela PGE paulista e, se o Supremo aceitar a contestação, a decisão terá “repercussão geral”, ou seja, valerá para todos os processos sobre o tema em tramitação no Brasil.

Caso o STF optar pela cobrança, os desembargadores do TJ-SP terão de aplicar o entendimento às ações ajuizadas pela família paulista, que precisará desembolsar cerca de R$ 2 milhões em impostos. Os ministros irão analisar a matéria através de um recurso apresentado pela própria PGE de São Paulo, que contesta a decisão que beneficiou a advogada.

São Paulo conta com a lei nº 10.705, de 2020, que prevê a cobrança do ITCMD sobre bens no exterior ou que foram enviados por pessoas que residem fora do país. Entretanto, os contribuintes alegam que o Estado não possui essa competência e que a cobrança para ser valida deveria estar prevista em lei federal. O Estado alega que a Constituição Federal, em seu artigo 24, permite a cobrança.

A PGE vê esse caso como sendo de justiça fiscal. “Tem se feito uma grande engenharia para que os mais ricos não paguem impostos. Eles fazem planejamentos fiscais abusivos e deixam de pagar, enquanto os demais, que não têm todo esse dinheiro, precisam pagar. Ou seja, o rico não paga, mas o pobre paga”, diz um procurador que trabalho do Grupo de Atuação Especial de Recuperação Fiscal.

O ministro Ricardo Lawandowski, do STF, já decidiu, de forma monocrática, um processo envolvendo a legislação do Rio (AI nº 805.043). A decisão, proferida em 2010, favoreceu o Estado.

Desta vez, o julgamento acontecerá no Plenário Virtual do STD. Nesta plataforma, os ministros têm o prazo de até uma semana para fazer o voto. O desfecho, caso não ocorrer pedido de vista e nem destaque que suspendam as discussões, deverá ocorrer no dia 30 de outubro.

Foi uma brecha no texto da Constituição de 1988, que previa a lei complementar para regulamentar a cobrança do ITCMD para quem tinha ativos no exterior, que deu margem para inúmeros processos que chegaram ao Judiciário brasileiro. Segundo Hermano Barbosa, sócio do BMA Advogados, é necessário mesmo ter uma regra adicional para se evitar a bitributação – ou disputas fiscais entre entes da federação.

Como o Congresso nunca legislou sobre o tema, a controvérsia foi parar no STF. “Há acordos internacionais para se evitar a bitributação de impostos sobre herança e sucessões, mas o Brasil nunca assinou por conta do modelo federativo”, afirma Barbosa. “O sujeito herda um imóvel na França, país que tem a maior tributação sobre heranças do mundo, e também vai pagar o imposto no Brasil? Ou recebe em doação ativos nos Estados Unidos, ações, vai ser tributado lá e aqui?”, questiona o tributarista.

Na ausência de uma lei complementar, dos 27 Estados, 22 criaram regras de tributação sobre heranças recebidas no exterior. O contribuinte insatisfeito vai ao Judiciário questionar. Ele comenta que a Procuradoria Geral da República (PGR) já fez parecer favorável aos contribuintes.

Quando o doador é estrangeiro ou há sucessão em que o falecido tem bens no exterior, o texto constitucional é claro sobre a necessidade de lei complementar, diz Frederico Bastos, sócio do BVZ Advogados.

“São Paulo tem jurisprudência favorável ao contribuinte. Muitas famílias com patrimônio relevante e recursos no exterior, antes de qualquer movimentação do capital, ajuizam algum recurso para evitar que o ITCMD seja cobrado por ora”, diz Bastos. Dessa forma, o Fisco não pode fazer a autuação até que o STF decida.

Embora a PGE fale de justiça fiscal com a cobrança do ITCMD, a questão precisa ser encarada tecnicamente e não de forma politizada, defende Barbosa, do BMA. Também professor do Insper, Bastos, do BVZ, diz que práticas de planejamento tributário é assunto recorrente no estudo do Direito, e um expediente comum entre famílias de alto patrimônio.

Alessandro Fonseca, sócio de gestão patrimonial do Mattos Filho, diz que há parâmetros usados pela Receita para identificar se quem faz a declaração de saída definitiva do país de fato fez o movimento. Se alguém com alto patrimônio muda sua residência fiscal e a primeira coisa que faz é a doação no exterior e, na sequência, parte dos recursos volta para o Brasil, esse é um fluxo que vai ser analisado.

Segundo o especialista, é preciso haver a efetiva transferência do centro de interesse, romper os vínculos presenciais com o país, o que vale para qualquer obrigação tributária. No caso de empresário residente no exterior, mas com operações dentro e fora do Brasil, ele tem o precedente de eleger uma jurisdição onde vá cumprir os requisitos legais.

Fonte: Valor Econômico