O direito societário brasileiro trata sobre a questão de conflito de interesses especialmente quando dispõe que o acionista está vedado a votar em determinados cenários.  Ou seja, quando houver conflito de interesse entre este acionista e a companhia em questão. Quanto a este ponto, observa-se o art. 115, § 1 da lei 6.404/76 (também conhecida como “Lei das sociedades anônimas”).

Art. 115. (…)

  • 1o. O acionista nãoo poderá votar nas deliberações da assembleia-geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e a aprovação o de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficia-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia.

Da interpretação do referido artigo, desdobram-se quatro principais pontos da observância de vedação do direito de voto do acionista : (i) quando da ocorrência de deliberações assembleares relativas à avaliação de bens que integrem seu patrimônio e em aumento de capital; (ii) quando da aprovação de suas contas como administrador; (iii) quando há a possibilidade de beneficiar o acionista particularmente; e finalmente (iv) quando o interesse do acionista estiver em conflito com o da companhia.

Entretanto, em relação ao último ponto, é notável a divergência de entendimento do que seria, efetivamente, conflito de interesses. Deste debate, nascem duas correntes majoritárias: a corrente formalista, e a corrente substancialista ou de conflito material. A seguir, apresentaremos o significado de cada uma delas.

Enquanto a teoria do conflito formal (ou corrente formalista) defende a interpretação de que o acionista não poderia votar “pela mera ostentação de posição contraposta à da companhia”1 sendo verificado de forma ex ante2; a teoria do conflito material (ou corrente substancialista), por sua vez, adota o entendimento de que “o contraste de interesses entre as partes não necessariamente implica em interesses conflitantes”3, tendo em vista que a interpretação deve contar também com o conteúdo deste voto e com a incidência de dano.

Em outras palavras, na teoria do conflito formal, mesmo que o voto não beneficie a situação conflituosa, o acionista ainda sim permanece impedido de exercer seu direito ao voto. Sendo assim, se por um lado na corrente formalista a averiguação de conflito ocorre antes da assembleia, na corrente substancialista esta interpretação ocorrerá em momento posterior à assembleia.

Entre os adeptos da corrente substancialista está Nelson Eizirik4, ao acertadamente, em nossa opinião, entender que para a caracterização do conflito de interesse nos termos do art. 115 seria necessária uma análise posterior de desvio de finalidade5. Esse seria feito com  a intenção de privilegiar interesses próprios do acionista que sejam incompatíveis com o interesse social, não bastando, assim, a mera contraposição de interesses para a caracterização do conflito. Para justificar sua posição, argumenta que não haveria sentido na proibição do voto em termos absolutos, uma vez que tal presunção de ilegitimidade poderia acarretar na proibição de voto em todo e qualquer negócio jurídico entre a companhia e o acionista e ir de contramão ao princípio legal de que a companhia poderá contratar com acionistas desde que em condições equitativas (art. 117, § I o, alínea “f”)6.

Dessa forma, quando analisada a redação do §1 do art. 115, averigua-se a possibilidade dessas duas correntes interpretativas, sendo a do conflito de interesse a priori  aceita em algumas correntes doutrinárias e casos  brasileiros. Entretanto, em possível contradição com essa interpretação formalista do referido artigo (que também é objeto de debate), o §4 do mesmo dispositivo dispõe acerca de um controle objetivo e factual, como observado:

  • 4º A deliberação tomada em decorrência do voto de acionista que tem interesse conflitante com o da companhia é anulável; o acionista responderá pelos danos causados e será obrigado a transferir para a companhia as vantagens que tiver auferido.

A redação do §4, portanto, parece fortalecer a interpretação substancialista dada ao conflito de interesses, de modo que doutrinadores a ela adeptos passam a afirmar que para a anulação da deliberação seria indispensável a demonstração (i) do conflito de interesses; (ii) da prova do dano, atual ou potencial, sofrido pela companhia; e (iii) de que o voto do acionista com interesse conflitante tenha sido determinante para a formação da maioria7. Nesse sentido, o ato ilícito só seria caracterizado mediante ao exercício do direito de voto nessas condições, pelo qual o acionista deverá se responsabilizar pela ocorrência dos danos que causou.

Entretanto, tal artigo não teve o condão de afastar as controvérsias na interpretação da temática do conflito de interesses, que são ainda mais acentuadas quando observadas as divergências de entendimento entre a literatura nacional e o órgão regulador de mercado de capitais sobre este mesmo tema. Na medida em que a literatura adota uma interpretação substancial do conflito8(concluindo ser adequada a administração objetiva e factual, caso a caso), o órgão regulador acabou adotando, por algumas vezes,  uma interpretação gramatical do texto da lei, isto é, formalista e estimativa.

Um exemplo emblemático para esta discussão se dá pelo caso Tractebel9, em que foi adotada pela CVM a teoria formalista de conflito de interesses da qual o órgão já era historicamente adepto.10 O caso colocava a problemática acerca da possibilidade de voto do acionista controlador em deliberação sobre a celebração de transação de compra e venda de ações entre a Tractebel e sua controladora. Foi decidido na ocasião que tal acionista controlador estaria, a priori, impedido de exercer o direito de voto, uma vez que figuraria como contraparte no contrato através da sociedade por ele controlada, sendo o conflito de interesses inerente.

A alusão pela CVM à sua adoção da linha de entendimento material acerca do conflito de interesse fora reafirmada em casos mais recentes, como no julgamento de dois administradores da Forja Taurus S/A em 201711 e no entendimento anterior firmado no caso de Eike Baptista12, onde se considerou que o conflito de interesses ocorreria mesmo quando o voto é realizado através de outra pessoa jurídica controlada pelo administrador.

Concluímos, portanto, que esta imprecisão e discordância na interpretação do que constituiria um conflito de interesse é nociva para os agentes tomadores de decisões e influenciados pela CVM. Isto porque se torna espinhoso definir o que seria um interesse de natureza extrassocial (ao ponto de tornar-se um impeditivo do direito de voto do acionista). Ademais, acreditamos ser equivocada a adoção da teoria formal de conflito de interesse pela CVM, por exemplo quando no caso Tractebel, na medida em que propõe uma análise muito restrita da situação fática e resulta na limitação adequada aplicação do dever de lealdade dos administradores, que determina que esses realizem julgamentos e ajam no interesse da companhia ao analisar as situações caso a caso. Deste modo, além de inibir que os mesmos agentes consigam antever as consequências de suas ações, esta inconsistência conceitual culmina, em última instância, na instabilidade jurídica no campo do Direito Societário brasileiro.

Fonte: Migalhas

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