O planejamento sucessório envolve, em muitos casos, a utilização de uma pessoa jurídica para otimizar a gestão patrimonial e simplificar a transmissão dos bens quando aberta a sucessão. Ocorre que a determinação da base de cálculo do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD) é frequentemente realizada de forma equivocada pelos Estados.

Para começar a conversa, é preciso estabelecer uma premissa: a tributação deve sempre pairar sobre bases reais. Em outras palavras, o Fisco pode tributar apenas a riqueza verdadeira, titulada pelo contribuinte e não uma riqueza fictícia. Essa premissa decorre da Constituição que estabelece o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1° da CRFB). Durante alguns anos o Supremo Tribunal Federal defendeu a inaplicabilidade da norma aos tributos reais, por entender que não seria possível aferir a capacidade contributiva dos herdeiros. A orientação da Suprema Corte foi alterada para passar a permitir a graduação do ITCD de acordo com a variação do patrimônio transmitido. Em que pese a modificação tenha servido para justificar a utilização de alíquotas progressivas, isto é, favorecer os Estados, não se pode interpretar a Constituição em tiras (como diria o Min. Eros Grau), nem mesmo interpretá-la de forma unilateral a favorecer apenas um dos lados da relação jurídico tributária. Portanto, é preciso assentar a premissa: a incidência do ITCD deve pairar sobre bases reais, verdadeiras, ou seja, sobre a riqueza efetivamente ostentada pelo espólio.

Esta premissa coloca em xeque todas as técnicas de apuração da base de cálculo de participações societárias que não levem em consideração as melhores práticas contábeis. Isso porque algumas Administrações Tributárias desconsideram os métodos tradicionais de avaliação de empresas e passam a criar, por meio de instrução normativa, suas próprias técnicas, como é o caso do Rio Grande do Sul. Tanto a Lei Estadual n° 8.821/89, quanto o Decreto n° 33.156/89, não definem o critério de avaliação de sociedades. O artigo 14, § 13 do Decreto n° 33.156/89 remete à regulamentação por parte do fisco estadual. A Receita Estadual, por sua vez, editou a Instrução Normativa DRP 45/1998. Na redação original, o item 6.4, Capítulo II, Título II da IN determinava a utilização do: “o Patrimônio Líquido atualizado acrescido de 50% da Receita Líquida média, anual e atualizada” para determinação da base de cálculo de empresas de capital fechado. Este critério era absurdo e não encontrava amparo em nenhum norma técnica contábil. O Tribunal de Justiça do RS afastou a aplicação do critério previsto na IN 45:

APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. ITCD. BASE DE CÁLCULO. TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS E AÇÕES DE PESSOA JURÍDICA. ACRÉSCIMO AUTOMÁTICO SOBRE PATRIMÔNIO LÍQUIDO. ILEGALIDADE. CONCESSÃO DA ORDEM. MANUTENÇÃO. O mandado de segurança é o remédio constitucional apto a proteger direito líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, consoante dispõem os artigos 5º, inciso LXIX da Constituição Federal, e 1º, da Lei nº 12.016/2009. No Mandado de Segurança não é admitida dilação probatória, sendo necessária a juntada de prova pré-constituída a demonstrar, de plano, o direito alegado. A expressão direito líquido e certo constante no art. 1º da Lei 12.016/2009, tem caráter nitidamente processual, visando garantir a sumariedade que é própria da ação constitucional. Em outras palavras, a questão duvidosa, que depender de dilação probatória, está excluída do âmbito do “writ”. Assim, o direito amparado pela ação de mandado de segurança é aquele que resulta de fato certo, que não desperte dúvidas e que não reclame produção ou cotejo de provas. In casu, mostra-se plenamente cabível a utilização deste instrumento para viabilizar a pretensão deduzida pela parte impetrante, uma vez que apenas busca discutir a legalidade do acréscimo de 50% sobre a receita líquida anual, média e atualizada da empresa, prevista na InstruçãoNormativaDRP 45/98, Título II, Capítulo II, Seção 6.0, item 6.4, para fins de apuração da base de cálculo do ITCD. A base de cálculo do ITCD é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, conforme preconiza o art. 38 do CTN e o art. 12 da Lei Estadual nº 8.812/89. Em se tratando de transmissão de direitos e ações de pessoa jurídica, deve ser considerado para a fixação da base de cálculo apenas a Receita Líquida média, anual e atualizada, sem o acréscimo de 50% (cinquenta por cento) previsto na IN DRP 45/98, Título II, Capítulo II, Seção, 6.0, item 6.4. Hipótese em que a instruçãonormativa extrapola o poder regulamentar, ao definir como critério de apuração da base de cálculo do ITCD a projeção de lucros futuros e não no valor venal do bem a ser transmitido na data da apuração. Além disso, trata-se de forma de majoração tributária, com a alteração da base de cálculo de imposto, promovida por instrumento normativo impróprio, em flagrante violação ao princípio da legalidade tributária, insculpida no art. 146, inciso III, alínea ‘a’, da Constituição Federal. Precedentes desta Corte. Manutenção da sentença que concedeu a ordem pleiteada. APELO DESPROVIDO. REMESSA NECESSÁRIA PREJUDICADA.(Apelação Cível, Nº 70084182112, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lúcia de Fátima Cerveira, Julgado em: 03-06-2020)

PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. ATENDIMENTO. ARTIGO 1.010, II E III, CPC/15. É de ser conhecida a apelação do Estado do Rio Grande do Sul, uma vez atendido ao princípio da dialeticidade, por impugnar, de forma específica, a motivação apresentada pela sentença, tal qual reclama o artigo 1.010, II e III, CPC/15. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. ARTIGO 1º, CAPUT, LEI Nº 12.016/09. Visando o mandado de segurança à proteção de direito líquido e certo da impetrante, consistente no estabelecimento de critérios de tributação em violação a ditames constitucionais e infraconstitucionais, especificamente quanto à base de cálculo do ITCMD, quanto ao que há prova pré-constituída, cabível o manejo do writ, nos exatos termos do artigo 1º, caput, Lei nº 12.019/09, não havendo cogitar de carência de ação. TRIBUTÁRIO. ITCMD. BASE DE CÁLCULO. ARTIGO 12, CAPUT E § 1.º, LEI ESTADUAL N.º 8.821/89. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA E DA TIPICIDADE CERRADA. A base de cálculo do ITCMD está devidamente definida na Lei Estadual n.º 8.821/89, assim como no seu decreto regulamentador, consistindo no valor venal dos bens, títulos ou dos créditos transmitidos, a ser apurado mediante avaliação procedida pelo Fisco ou por avaliador judicial, mostrando-se descabido acréscimo à base de cálculo do tributo contido em instruçãonormativa estadual, extrapolando poder regulamentar por divergir da definição contida na própria lei estadual. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70074894197, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 13/09/2017) APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. ITCD. INCIDÊNCIA. PATRIMÔNIO LÍQUIDO A SER TRANSMITIDO. A base de cálculo do ITCD é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, de forma que não pode ser admitido que a receita líquida da empresa avaliada seja considerada para fins de apuração da base de cálculo do tributo, o qual, conforme jurisprudência deste Tribunal, deverá considerar apenas o patrimônio líquido transmitido. Precedentes do TJRS. SENTENÇA MANTIDA EM REEXAME NECESSÁRIO. (Reexame Necessário Nº 70067671883, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Luís Medeiros Fabrício, Julgado em 04/02/2016) APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO TRIBUTÁRIO. ITCD. BASE DE INCIDÊNCIA. INSTRUÇÃONORMATIVADRP45/1998. FLUXO DE CAIXA DESCONTINUADO. RECEITA LÍQUIDA MÉDIA ATUALIZADA. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. 1. Embora o uso da técnica de fluxo descontado permita projetar a capacidade de lucro de uma empresa num determinado período, é indevido o uso de projeção/suposição de receita líquida na base de incidência do ITCD. Isto porque a base de incidência do referido tributo é o valor venal dos bens ou direitos efetivamente transmitidos. Assim, conforme jurisprudência desta Corte, deve ser considerado na base de incidência do tributo tão somente o patrimônio líquido transferido, sem o acréscimo de 50% da receita líquida média anual atualizada. A conclusão é no sentido de que está havendo verdadeira majoração tributária através do subterfúgio da alteração da base de cálculo por mera instruçãonormativa, o que não pode ser aceito frente à flagrante ilegalidade, visto que somente a lei assim pode autorizar 2. Em regra, nos casos de condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários de sucumbência, deve ser observado o disposto no art. 85, §3º, do CPC, ou seja, o percentual fixado deve incidir sobre o proveito econômico, não sobre o valor da causa. Como a sentença é ilíquida, os honorários de sucumbência deverão ser fixados em fase de liquidação de sentença (art. 85, §4º, II, do CPC), observado o proveito econômico da parte autora e o disposto nos incisos do art. 85, §5º, do CPC. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO DO RÉU. RECURSO DE APELAÇÃO DA PARTE AUTORA PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Cível, Nº 70080423189, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Barcelos de Souza Junior, Julgado em: 24-04-2019)

Porém, muitos contribuintes, por desconhecimento ou premidos pela necessidade de ultimar o inventário, recolheram o tributo, o que enseja o ajuizamento de ação de repetição de indébito.

Felizmente a norma foi alterada e agora consta a seguinte redação:

6.4 – Nas hipóteses previstas no RITCD, art. 14, §§ 12 e 13, as empresas de capital fechado e as ações, quotas, participações ou quaisquer títulos representativos do capital social, que não forem objeto de negociação em bolsa de valores, ou não tiverem sido negociados nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores à data da avaliação, terão seu valor venal apurado de acordo com as normas técnicas que orientam a prática de avaliação de empresas, o qual poderá considerar, para efeitos de seu cálculo, o ajuste de registro contábil, quando estiver em desacordo com os valores praticados pelo mercado na data da avaliação. (Redação dada pela IN RE 076/20, de 29/09/20. (DOE 01/10/20) – Efeitos a partir de 01/10/20).

Se por um lado, a modificação pôs fim a infeliz redação revogada, por outro lado, a norma deixa em aberto o critério a ser utilizado para efeito de avaliação da pessoa jurídica e assim apurar a base de cálculo do ITCD devido em relação a holding. Na ausência de critério, é importante que os profissionais que acompanham o inventário prestem muita atenção na avaliação realizada pela Fazenda Estadual porque a sociedade deve ser avaliada de forma a refletir a riqueza, como já dito, real e não ficcional.

O importante é conseguir retratar o valor real da empresa, nem para mais, nem para menos. Apenas o valor justo para se utilizar a linguagem contábil.

Na grande maioria dos Estados, o ITCD deixou de ser um imposto lançado pela modalidade “declaração” (quando o contribuinte inicia a avaliação e o fisco encerra o lançamento) e passou a adotar o chamado “autolançamento” ou também chamado “lançamento por homologação”. A mudança implica em conferir ao contribuinte a responsabilidade pela apuração do tributo, admitindo-se a desconsideração das informações lançadas nas estritas hipóteses do artigo 149 do Código Tributário Nacional. Em outras palavras, competiria ao Fisco demonstrar que o contribuinte incorreu em alguma das hipóteses prescritas pelo CTN e não poderia simplesmente desconsiderar o lançamento realizado.

Em qualquer caso, a legislação estadual prevê hipótese de questionamento da avaliação realizada pelo Fisco (no Rio Grande do Sul é chamada de “avaliação contraditória”). Trata-se de expediente administrativo que possibilita apontar os equívocos da avaliação e com isso promover a redução do imposto apurado. Como interessa ao fisco arrecadar e também interessa aos herdeiros ultimar o inventário, normalmente este processo administrativo é julgado de forma mais expedita, o que deve ser levado em consideração pelos profissionais na busca da redução do impacto da tributação. Outrossim, caso não seja possível aguardar o julgamento administrativo, é possível adotar de duas, uma solução: (a) ou os herdeiros recolhem o imposto a maior e promovem a repetição do indébito posteriormente ou (b) os herdeiros depositam em juízo o valor integral (art. 151, II, CTN) e postulam a suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Nesta hipótese, é possível concluir o inventário e relegar para o final do processo o destino do valor depositado em juízo. Em caso de vitória do contribuinte, basta solicitar a expedição de alvará para recuperar o valor, em caso de derrota do contribuinte, o valor é convertido em renda em favor do Fisco e nenhum valor é devido (art. 156, VI, CTN).

Fonte: Ederson Porto.